Dislexia na Infância

Publicado: 29 de setembro de 2011 em Neuropediatria
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Por Antônio Carlos de Farias.

Já em seu sentido semântico, percebe-se que a Dislexia está intrinsecamente relacionada a um problema de Linguagem, particularmente Linguagem no sentido de Comunicação.

O disléxico apresenta dificuldades no nível mais primitivo da linguagem, o fonológico, o que lhe dificulta progredir para a forma mais complexa, a da compreensão simbólica – Leitura. Ele apresenta dificuldades de leitura porque interpreta mal as características sonoras dos símbolos gráficos (fonemas), reconhece com dificuldade esses sons quando estão integrados na palavra falada, tem dificuldade de compô-los em uma sequência lógica para formar e reconhecer palavras novas.

A compreensão da função da linguagem, seus mecanismos fisiológicos, a cronologia da formação e do desenvolvimento das estruturas anatômicas que a modulam e o reconhecimento precoce de suas disfunções são pré-requisitos fundamentais para entender e reabilitar pessoas disléxicas.

Linguagem – Aspectos anatomofuncionais

Para que a criança desenvolva uma leitura fluída, com compreensão, e também consiga expressá-la através da linguagem verbal e escrita, seu cérebro deve possuir uma boa estrutura anatomofuncional. Isso envolve os sistemas sensorial, visual, auditivo e táctil, integrados com centros cerebrais que interpretam, organizam e coordenam uma resposta cognitiva motora, práxica, ocular, manual e articulatória da fala.

Todos os estímulos sensoriais, à exceção do olfato, são primariamente processados no tálamo, uma estrutura importante para seleção de estímulos que necessitam processamento rápido. A partir do tálamo, os estímulos são direcionados para áreas específicas localizadas no córtex cerebral cujas funções estão relacionadas à interpretação. Essas áreas interpretativas são mais desenvolvidas no lado dominante do cérebro (geralmente, o lado esquerdo nas pessoas destras).

Os estímulos visuais são interpretados nas áreas de associação localizadas na confluência dos lobos temporal, parietal e occipital (giro angular). Esta área realiza o processamento gráfico da leitura. A integração do estímulo visual com o auditivo e a interpretação global da linguagem verbal e simbólica (leitura) ocorre na parte póstero-superior do lobo temporal (área de Wernicke). Uma lesão cerebral nessa área pode ocasionar um tipo peculiar de Dislexia, na qual o indivíduo é capaz de ver as palavras, saber que são palavras e, mesmo assim, não ser capaz de reconhecer seu significado. É na área de Wernicke que temos consciência do significado daquilo que se ouve e vê.

Uma vez processado na área de Wernicke, o estímulo é retransmitido para o córtex motor frontal (área de Broca), região responsável pela organização da resposta motora com a finalidade de executar a articulação da fala ou de retransmiti-la a outros centros motores para a execução dos atos manuais da escrita.

Linguagem – Aspectos evolutivos-maturativos

Todas as estruturas anatômicas previamente citadas, que participam da comunicação, passam por um processo de crescimento, desenvolvimento e organização ao longo da infância. À medida que esses processos ocorrem, a criança aumenta paulatinamente o seu repertório de comunicação até chegar ao ponto de adequada prontidão neurológica para o aprendizado da leitura e escrita. É muito importante o conhecimento dessas fases fisiológicas. Muitos quadros “rotulados” como Dislexia são apenas fases normais do desenvolvimento da linguagem infantil. Segue uma relação simplificada da idade em que as estruturas estão “prontas” e a criança está apta a desempenhar as funções correspondentes:

0 a 1 ano :
Desenvolvimento das vias auditivas sub corticais e tálamo cortical.
Fase pré-linguística, uso da expressão facial e gestos para comunicação.
Lalação (sons sem significado), ecolalia (repetição da palavra sem entendê-la).

1 a 4 anos:
Desenvolvimento das vias córtico-nucleares e vias de associação intra e
inter-hemisféricas. Fase lingüística.
Sistema Fonológico – Aumento progressivo da capacidade de discernir os sons e de produzi-los com objetivo de formar novas palavras e frases.
Sistema Semântico – Aumento progressivo da capacidade de compreender a fala e seu significado.
Sistema Pragmático – Aumento progressivo da capacidade de usar a linguagem com um sentido de comunicação social.

4 a 6 anos:
Estágio visual da leitura – análise visual do estímulo gráfico. A criança aprende a copiar.

5 a 7 anos:
Estágio fonológico da Leitura – Reconhecimento e processamento dos sons associados ao símbolo gráfico. A criança aprende a ler e a escrever de forma silabada.

7 a 9 anos:
Estágio ortográfico da Leitura – Estágio de memorização e leitura da palavra inteira. A criança aprende a ler de forma fluída e com bom nível de compreensão.

Bases Genéticas da Dislexia

Estudos clínicos e epidemiológicos sugerem uma base genética para Dislexia. Nos diversos estudos com indivíduos disléxicos, identificou-se história familiar em parentes de primeiro grau em 25 a 65% dos casos. Os estudos na área de genética molecular tem identificado anormalidades cromossômicas evidentes nos cromossomos 6 e 15. O projeto Genoma Humano já identificou os Genes DYX1, DYX2, DYX3, DYX4, relacionados a subtipos específicos de dislexias.

Bases Patológicas da Dislexia

As alterações gênicas previamente descritas condicionam a formação de um cérebro com alterações estruturais nos circuitos relacionados à linguagem. Essas alterações podem ter um caráter variado. Por exemplo, enquanto o córtex cerebral das áreas interpretativas tem seis camadas, sendo a primeira camada desprovida de células nas pessoas normais, nos Disléxicos existem as mesmas seis camadas, porém a primeira camada é provida de células, ou seja, nos Disléxicos, essas células estão em um local em que não deveriam estar (ectopias). Elas chegam a esse local porque “erram” o caminho durante o período de formação cerebral, durante o estágio de migração neuronal entre o primeiro e segundo mês de gestação. Além de incorretamente localizadas, essas células, geralmente, estabelecem conexões inadequadas com outras células (microdisgenesias). Essas alterações também ocorrem na camada de neurônios magnocelulares do tálamo.

A organização defeituosa desses circuitos gera um déficit de função encefálica no tálamo relacionado ao processamento de informações rápidas (p. ex., visão durante a leitura, percepção de sons durante a conversação) e também dificuldades interpretativas por comprometimento do córtex cerebral – áreas interpretativas (giro angular, área de Wernicke).

Dislexia e Processamento Fonológico

As pessoas normais podem discernir as mais rápidas combinações de sons encontradas em uma palavra como, por exemplo, o som do “P” e do “A” na palavra “PA”, que estão separadas por um tempo aproximado de 10 milésimos de segundos. Os disléxicos com desordem do processamento fonológico (90% dos casos) necessitam de um tempo maior, aproximadamente 80 milésimos de segundo. Isto lhes acarreta um grave problema de leitura, uma vez que esta é aprendida pela combinação dos símbolos (letras) com os seus respectivos sons (fonemas). As dificuldades em superar o estágio fonológico da leitura também dificultam o progresso ao estágio ortográfico.

É importante ressaltar que, mesmo diante de todas estas dificuldades, os disléxicos, na maior parte das vezes, mantêm a capacidade de processar a leitura, embora esta seja de aquisição lenta. Quando ela ocorre, o erro ortográfico continua com certa frequência.

Dislexia e Processamento Visual

Apesar do processamento visual não ser um fator preponderante na causa da Dislexia, algumas anormalidades dessa função podem interferir com a habilidade da leitura. Parte dos disléxicos (aproximadamente 10%) apresenta problemas de leitura porque tem dificuldade de manter a imagem da palavra em seu campo visual. Ao praticar o ato da leitura, “varrendo” a página da esquerda para direita, as letras parecem tremular, as palavras parecem mexer, às vezes, desaparecem do campo visual, tornando difícil o seu processamento. Os estudos histopatológicos do Dr. Al Galburda, da Escola de Medicina de Harvard, demonstraram que esses indivíduos também apresentam um menor número de neurônios nas camadas magnocelulares do tálamo esquerdo. Alguns estudos têm demonstrado que esses pacientes podem beneficiar-se do uso de lentes oculares especiais (Lentes de Irlen).

Dislexia e Aspectos Sociais

Embora tenham inteligência, capacidade visual e auditiva normais, os disléxicos podem apresentar problemas de interação social por suas dificuldades de processamento rápido relacionadas à visão e à audição. Sua percepção pode ser distorcida como, por exemplo, entender mal uma conversação, assimilar mal pistas não verbais (linguagem corporal, expressão facial, tom de voz), ocasionando situações constrangedoras, mal-entendidos, rejeição e isolamento.

Dislexia e Plasticidade Cerebral

Estudos com ressonância magnética funcional encefálica, conduzida por Shoywitz, da Universidade de Yale, têm demonstrado que indivíduos disléxicos tendem a usar outras regiões do cérebro, como a área motora de Broca, para compensar os déficits nas regiões relacionadas à compreensão. Quando os disléxicos lêem, ocorre um aumento da atividade na área frontal esquerda (Broca) e uma diminuição da atividade na porção anterior (área de Wernicke), o contrário do que ocorre nos controles normais.

Dislexia – Como Diagnosticar?

1. Relatório Escolar

2. História clínica:
– Crianças com dificuldades persistentes de aquisição da Leitura, principalmente após os 9 anos de idade.
– Antecedentes de atraso de aquisição ou transtornos da linguagem
– História familiar de distúrbios da linguagem ou dislexia.

3. Exame neurológico evolutivo: atenção, percepção, memória, coordenação, praxia, avaliação da escrita e leitura – fluência e compreensão.

4. Avaliação da acuidade auditiva e visual

5. Testes psicométricos para avaliar do potencial cognitivo

6. Avaliação linguística

7. Avaliação do processamento auditivo

8. DSM-IV, questionários de comportamento

9. Diagnóstico iferencial:
– Alfabetização ruim, estímulo ambiental deficiente.
– Atraso simples de aquisição da Linguagem.
– Transtornos da linguagem (transtornos articulatórios, disfasia, transtorno semântico-pragmático), Landau Klefner.
– TDAH desatento
– Deficiência mental
– Autismo

Dislexia – Como tratar?

Não há um tratamento medicamentoso específico. Medicamentos podem ser indicados apenas para fatores associados, como transtorno de atenção e problemas comportamentais.

Não há, ainda, uma terapia cognitiva única. O tratamento deve basear-se em medidas que favoreçam a plasticidade cerebral, caminhos cerebrais alternativos para o processamento da leitura.

Algumas crianças aprendem a ler mais facilmente amparadas pela fonética, outras aprendem melhor através de técnicas linguísticas, em que as formas visuais complexas das palavras são aprendidas em contexto.

Crianças com dificuldades no estágio ortográfico beneficiam-se das técnicas linguísticas porque são instruídas a reconhecer a palavra inteira.

Crianças com dificuldades no estágio fonológico devem ser treinadas por técnicas fonéticas. Existem programas de computador com exercícios baseados no treinamento do cérebro para reconhecer mudanças rápidas de fonemas na fala normal. Um exemplo é o FAST FORWARD, programa já usado em escala comercial nos EUA. Também existem jogos infantis programados para diminuir o ritmo da fala e prolongar a duração dos sons, tornando mais fácil a compreensão dos fonemas. A terapia fonoaudiológica em cabine também é um importante recurso para reabilitação de disléxico com alteração do processamento auditivo.

Referência Bibliográfica

  1. Diament A., Cypel S., Neurologia Infantil 2ª edição – L. Atheneu Editora, 1990.
  2. John J. Ratey. O Cérebro – Um guia para o usuário – Editora Objetiva, 2002.
  3. Guyton Arthur C. Tratado de Fisiologia Médica.Editora Interamericana Ltda 1997.
  4. Galaburda M.A. From Reading to Neurons MIT Press January 1989
  5. Galaburda M. A. The Languages of the Brain MIT Press Decembers 2002

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